Entrevista a Rosário da Luz

"Dizem que as armas de um MC são a dupla CANETA/PAPEL e um microfone.
Neste caso, faz todo o sentido chamar a nossa próxima convidada de MC. Por isso convosco, a MC Rosário da Luz, porque ela armada destas mesmas armas, tem feito mais vítimas que qualquer outro que analisa e lê a PolitiKa.cv.
Antes de começar, não podemos deixar de agradecer a sua gentileza e presença no nosso blog, o que muito nos orgulha e valoriza."
1. Rap e Política. Política e Rap. Os jovens rappers de CV, têm sempre uma intervenção política mas nunca ouvi nenhum político falar das mensagens dos rappers (a não ser quando lhes convém). Sendo que os jovens tentam despertar a consciência política de quem os ouve, qual o motivo de serem tão desconsiderados pelos políticos?
Os jovens rappers são desconsiderados pela classe política PRECISAMENTE porque tentam despertar a consciência política de quem os ouve. O problema aqui é que estamos a classificar duas coisas muito diferentes como "política".
Há a política do status quo, que é feita pelos beneficiados do sistema; pelos políticos profissionais, focados na manutenção de uma ordem social injusta, porque ela LHES convém; e há a política de consciencialização que referes, feita por activistas[TT1] anti-sistema e focada na sua transformação, via a consciencialização do cidadão.
Essas duas "políticas" são inimigas naturais. O que o jovem rapper quer fazer é subverter a ordem social injusta que mantém o político rico e feliz. É óbvio que o político do sistema fará TUDO para o impedir, e tem duas escolhas: ou consegue comprar o rapper e pagar-lhe para cantar versos soft nos seus comícios; ou ignora-o, e faz tudo no seu poder para que a mensagem de consciencialização NÃO chegue às outras vítimas do sistema - que são os seus eleitores.
2. Porque nenhum político alguma vez se sentou com estes fazedores de opinião? É porque não se sentam com ninguém que não esteja incluída na cultura dos "My Hommies" ou porque na verdade eles não têm nada para dizer a essa camada jovem?
Não interessa a nenhum político ter uma troca de ideias honesta com esses jovens - aliás, com nenhuma vítima do sistema. A juventude só lhes interessa no papel de thugs eleitorais ao seu serviço; e como eleitores comprados com eventos e promessas de educação e emprego. Mas para cumprir esse papel, a juventude tem de se manter dependente e inconsciente. À classe política, só interessa o diálogo com uma juventude dócil. Uma juventude consciente da sua condição social - ou, pior, do seu poder - é uma ameaça a conter.
3. Consegues ser "odiada" pelos dois maiores partidos do país. Isso é intencional para que possas "parecer" uma analista idónea ou é mesmo uma demonstração da nossa pouca cultura democrática?
LOL. Não é intencional para parecer idónea; é o resultado de ser idónea. Em Cabo Verde, as nossas referências democráticas ainda são muito recentes. Na nossa história, o poder ou é absoluto - poder colonial e do partido único - ou é o clubismo do PAICV/MPD . As pessoas têm dificuldade em perceber posicionamentos políticos fora desse esquema. Mas isso está a mudar lentamente; já encontro muito mais facilmente quem percebe e partilha a minha posição.
4. Das dezenas de candidatos das últimas eleições municipais, algum deles tinha alguma política realmente de promoção da juventude? Algo inovador ou real? (não me lembro de nada nesse sentido a não ser as promessas de sempre sem fundamentos). E a nível nacional? Neste momento o PAICV ou o MPD têm alguma política séria para esta camada jovem, que está cada dia mais desiludida e desesperançada?
A ÚNICA candidatura que teve um discurso coerente para a juventude foi a da L.U.T.A. na Praia, encabeçada por Romeu di Lurdis - que obteve só 2% dos votos, porque a maioria da juventude nem sequer o ouviu. Ou estava desligada do processo eleitoral ou estava a soldo dos grandes partidos. De resto, a mesma demagogia de sempre: promessa de emprego, formação, blablablá, sempre baseado no que o outro gajo não fez.
Quanto ao PAICV e MpD, a principal política de inclusão da juventude é a capacitação; e os seus governos tiveram a mesmíssima atitude desonesta para com a juventude: construíram liceus e centros de formação em cada ribeira, licenciaram universidades por todo o lado, para enganar pais e alunos com um falso acesso à educação; para mantê-los fora do mercado de trabalho. Assim, quando o problema estourasse, seria no governo de outro fulano, se Deus quisesse. O resultado é que, no pouco emprego que é criado, no turismo por exemplo, os trabalhadores.cv [TT3] só ocupam as posições mais baixas precisamente porque a sua formação é deficiente.
É difícil acreditar que a sua atitude algum dia será diferente; e por isso mesmo, a única solução é o envolvimento político da juventude. Numericamente, a juventude decide qualquer eleição em Cabo Verde; chegou a hora de acordar, de parar de ser mercenários a soldo dos grandes partidos, e de militar por conta própria, com toda a sua energia.
5/6:. Na
cultura, quase nunca vi um artista actual assumir claramente a sua opção/cor política. Algum motivo que te
ocorra ou é mesmo o medo de criar "inimizades" e não ser convidado para as actividades culturais
geridas pelo Estado/município (que são a maioria)? Conheço um artista que recusou cantar num
evento patrocinado por um movimento não partidário porque foi aconselhado pelo próprio Manager. O mesmo indicou que
ele corria o risco de não ser convidado para mais nenhum evento pela Câmara, na própria
ilha. Qual a tua opinião para esta situação ou situações similares?
Há artistas que são muito críticos do status quo, mas que não têm cor política pela mesma razão que eu: porque não confiam em nenhuma das organizações. Mas para a maioria, o motivo principal é mesmo medo de criar inimigos no Poder.
Na economia.cv[TT4] , não há muitas oportunidades fora do financiamento público. É assim para todos os profissionais, mas a verdade é que os músicos são dos mais privilegiados; é o único sector que pode sobreviver sem a boa vontade do Estado, porque há um grande consumo privado da nossa música, tanto no país como no exterior.
Talvez por isso, mais músicos deveriam assumir uma posição mais política - não partidária.
7. Os jovens que fazem do rap a sua arte são exemplo dos maiores empreendedores actuais na cultura nacional, criando conteúdo todos os dias e lançando todos os dias. Mas não contam com nenhum apoio do nosso Ministério da Cultura. Qual o motivo de não terem pelo menos a possibilidade de acederem a apoios do Estado através de concursos? (eu pelo menos não conheço nenhum programa do Estado neste sentido)
Pelas razões que referi acima: se são críticos do sistema, o poder público não tem qualquer interesse em lhes dar oportunidades.
Por outro lado, se me permites, acho que os rappers.cv devem continuar a fazer exactamente o que fazem agora: continuar a ser empreendedores, estruturar cadeias de valor que os possam sustentar - monetização de conteúdos, eventos, etc. Num país como o nosso, o dinheiro do Estado vem com armadilhas; aceitá-lo é cortar as próprias asas. Precisamos de artistas livres.
8. Tenho
um amigo que precisa de 50 contos para terminar um CD. Conhecendo os meandros
da política, tens alguma ideia de como este jovem pode conseguir um apoio do Estado
para o efeito (quais os caminhos, por onde começar, a quem se dirigir, etc.)? É possível? Ou o
melhor é fazer como sempre e tirar do pouco salário até conseguir juntar o valor?
Há aqui dois problemas: de um lado, um Estado que não dialoga com os seus críticos; do outro, muito pessoal que não vê outra solução para além do "apoio" do Estado. E o Estado.cv fomenta essa atitude de dependência precisamente para ter esse pessoal na mão.
Portanto, o meu conselho para o jovem é procurar investidores, investir em si próprio, se acha que vale a pena. A música é dos poucos sectores onde isso é possível.
9. Fiz uma pergunta a uma jovem entrevistada e gostaria que comentasses:
"Porque achas que não temos mais mulheres a fazer RAP em Cabo Verde?
Sempre houve poucas mulheres interessadas no rap, mas com o tempo nota-se um acréscimo de mulheres que já começam a se interessar pelo estilo.
O rap é visto como o mundo dos homens. E sem falar da desvalorização do rap pela nossa sociedade. Ainda o estilo sofre bastante tabu.
A mulher é um ser forte mas muito sensível.
Acredito que um dos factores de ter poucas mulheres a fazerem o rap é por medo de não serem incentivadas pelas famílias ou pelos parceiros, ou por medo de rejeição.
Outro factor que leva a não ter mais mulheres no rap, é a complexidade e o tempo que o estilo exige. Não porque as mulheres não tenham capacidade, mas por terem outras responsabilidades, responsabilidades esses que não são exigidas nos homens.
A sociedade exige muito da mulher, a mulher tem de ser esposa, dona de casa, mãe, tem de cuidar dos filhos. Isto sempre nos foi incutido na nossa mente e isso nota-se em muitas mulheres que arriscaram e entraram no rap.
Elas começaram a fazer o rap quando adolescentes/jovens, mas partir do momento em que começam a formar as suas famílias ou que têm filhos, elas começam a se afastar, começam a fazê-lo com menos frequência ou até param de o fazer.
A minha opinião baseia-se no meu senso comum posso estar errada.
Acredita que essa pergunta me desencadeou o desejo de fazer um estudo sobre isso e conhecer quais são as razões kkkkkkk."
Bem... o ÚNICO ponto com o qual concordo é que o rap é um universo onde o machismo tóxico predomina, tanto a nível narrativo como operacional - o que dificulta a consolidação de artistas femininas. Mas de resto... se uma artista não cria "por medo de não ser incentivada pela família ou pelo parceiro, ou por medo de rejeição" é porque não vale nada como artista. Ser artista não é só ter talento, é ter coragem.
Quanto a ter mais responsabilidades do que é exigido dos homens, isso é verdade para toda a nossa existência; ia impedir-nos de ser rappers PORQUÊ?
Razões existirão certamente, mas estão para além destas generalidades.
10. Acerca do Hip Hop Criolo (HHC) sei que acompanhas alguma coisa porque já te vi a comentar algo. Qual a tua opinião? São um retrato real da sociedade cabo-verdiana ou ainda precisam aprofundar as mensagens e críticas?
Eu acho que, como em TODOS os géneros, há níveis diferentes de qualidade, de originalidade e de compromisso. O HHC tem artistas geniais, que retratam uma realidade profundamente Cabo verdiana; e tem outros menos inspirados - ou mais oportunistas - que se limitam a copiar as fórmulas genéricas do HH. O resultado são importações estéticas e conceptuais que não têm nada a ver connosco.
11. Sendo que o Revan participou numa crónica da Politika.cv, um projecto teu, podes fazer uma leitura política do último vídeo clip, da música HEY?
"Xpera kel migalha kei e ba panhal log ta korre"... O que o Revan retrata nessa canção é muito daquilo que eu tento retratar com os meus textos: a falta de compromisso da pulitika com o cidadão, e do cidadão consigo mesmo. O Revan é um óptimo exemplo do rapper engajado com a NOSSA realidade social.
12. Para
esta nossa tentativa de entrevista, fui consultar o teu arquivo no Expresso das
Ilhas e encontrei
crónicas tuas
datadas de 2012 a 2015. Reparei que na maior parte delas, se eu trocar o nome
do Partido/Ministro
ou data da mesma, tudo o que disseste continua actual/igual. Isso é prova que és uma bruxa ou que é
literalmente a mesma coisa, sermos governados pelo MPD ou pelo PAICV, já que os
interesses se mantêm
nos amigos e nunca no povo?
Prova que sou uma bruxa. Rbera de Janela, ke serteza. LOL. Mas a verdade é que não era difícil perceber que SIM, ser governado por PAICV ou MpD é basicamente a mesma coisa; porque ambos partidos têm a mesma atitude corporativista em relação ao poder. Não estão lá para servir o cidadão e sim as suas organizações. Estão lá para ganhar bem, dar emprego aos militantes, bons negócios aos familiares, etc. Nós é que temos de parar de ser babacas, parar de depositar a nossa confiança nesses dois e produzir alternativas eleitorais sérias.
13. Um termo que tornaste famoso é o termo Chihuahua de serviço. E quem acompanha as tuas redes sociais, até os reconhece porque são sempre os mesmos. Alguma vez sentiste a tua integridade ou a tua segurança colocada em causa ou achas que é apenas um ladrar irritante?
Há Chihuahuas que ladram alto, outros que rosnam como se fossem Pitbulls, mas nunca me senti ameaçada a sério. Em Cabo Verde, os inimigos do sistema não são violentados, apenas excluídos dos benefícios do Estado. Posso perfeitamente viver com isso.
14. "Cara de drogada", "mal vestida"," bêbada", "só usa chinelos e nem sapato deve ter" são alguns dos mimos que já li sobre ti. Isso só me demonstra que os teus maiores críticos não sabem como combater as tuas ideias e tentam combater a tua pessoa, denegrindo a mesma. A minha pergunta é: como reages a isso e como reage a tua filha a isso? Levas na desportiva ou ficas frustrada por eles não entrarem no debate de ideias entrando no ringue contigo para combater as tuas ideias? Dos teus Chihuahua de estimação, com qual terias mais prazer em estar num programa de Retórica? (não precisas mencionar o nome mas apenas a cor política, para não levarmos os dois com um processo de difamação)
Frustrada? LOL. Mais do que levar esses mimos na desportiva, eu recebo-os com agrado. Significam que estou a fazer o meu trabalho; e que as armas dos meus adversários são pobres. Quanto à minha filha, foi educada para perceber o verdadeiro motivo desses ataques e para os desvalorizar. Portanto tá-se bem.
Quanto ao meu Chihuahua preferido... pah... os mais inspirados são sempre os que estão no poder no momento. Têm mais a perder. Mas não dá para escolher UM; adoro TODOS os meus animaizinhos.
15. Já que falamos em difamação, qual a tua opinião acerca do processo que opôs o Rony Monteiro ao antigo Presidente da Assembleia Nacional, Basílio Mosso Ramos? Foi mesmo uma condenação política caso ou nem por isso?
Confesso que não prestei muita atenção ao caso. Digamos que, pelos intervenientes, a decisão não me interessa lá muito. Não me parece mais do que encenação política, dos dois lados.
16. Voltando ao HHC, qual a solução para que os seus intervenientes conseguirem chegar mais ao seu público (espectáculos, CD's,? É continuar a esperar que o "sistema" se lembre da existência desse movimento ou é continuar a combater o sistema, criando os seus próprios meios como até agora?
Continuar a combater o sistema, criando os seus próprios meios como até agora. CLARO. Enquanto tiverem algo real para dizer, o sistema vai ignorá-los. Se o sistema se lembrar da sua existência, podemos ter a certeza que é porque estão a auto censurar-se.
17. Antes que me esqueça. Rap de direita existe? É possível fazer rap e ser de direita? Ou isso demonstra claramente o desconhecimento da pessoa do movimento em que está inserido?
É possível adaptar as fórmulas musicais e líricas do Rap a narrativas de todo o tipo, incluindo de direita. Mas se podemos chamar "Rap" ao resultado... acho que não. O Rap é um movimento que se distingue por uma linha ideológica própria, e que está em contradição absoluta com a ideologia de direita.
18. Se fosses líder do governo por um dia e com direito a ter uma única ideia aprovada, qual seria esse PROJECTO/DECISÃO/RESOLUÇÃO, que ias realizar? Porquê?
Bom... esta vai ser longa: a reestruturação e o reforço do investimento no ensino básico e secundário. Em Cabo Verde, a agricultura não funciona, a indústria não funciona e a única forma de garantir um bom emprego nos serviços é com formação de qualidade. Ou seja, a educação é a única coisa que garante a mobilidade ao trabalhador e um futuro à juventude. Mas a nossa história recente torna o ensino de qualidade difícil. Porquê?
Depois da Independência, o ensino básico foi massificado, seguido do secundário e agora o universitário. O problema é que, em cada um desses momentos, a maioria dos pais.cv não pôde acompanhar a qualidade da formação que os filhos recebiam: a maioria dos meninos no ensino básico tinham pais analfabetos; os do secundário tinham pais com o básico; e os na universidade tinham pais sem formação superior. O resultado é que os sucessivos governos tiveram espaço para criar políticas de educação eleitoralistas, de fachada, única e exclusivamente para manter a população enganada e se manter no poder. A qualidade foi para o beléléu.
Este vazio do sistema de educação está a condenar a juventude.cv à indigência e é a pior ameaça ao nosso futuro. A saúde e a educação públicas têm de estar no TOPO das prioridades do Estado. Como em Cuba. Já me chamam de bêbada e drogada, podem chamar de comunista também. LOL.
19. Consegues indicar algum MC nacional que seja essencial, seja a nível de mensagens nas suas músicas, do seu engajamento social ou porque simplesmente gostas mais desse que dos outros (dos que conheces, claro). Podes nos dizer o que te agrada mais nele?
Pois é... desta resposta vou fugir como o diabo foge da cruz. Há demasiada probabilidade de confusão com pessoal que estimo - não os Chihuahuas do costume. LOL.
20. Podes enviar umas palavras de encorajamento para os jovens de CV no geral, para que se interessem mais pela política porque querendo ou não, acordam e dormem, sendo influenciados por ela. E para os jovens que fazem do HHC a sua vida, mesmo sendo conotados de "loucos", "utópicos", "sonhadores" já que nunca vão conseguir rendimentos desta vida que fazem com toda a resiliência.
Este mundo está à beira de uma nova revolução; e muitas das revoluções que mudaram o curso da história foram cozinhadas por putos. Tomem consciência da vossa força. Levantem a cara da merda do celular, parem de cobiçar e comprar lixo que não precisam, parem de colaborar com este sistema político podre, seja por cobardia ou omissão. A juventude da direita está a radicalizar-se a olhos vistos; não deixem que ela se radicalize sozinha. Ocupem espaço, porra.
Aos rappers do HHC, para além de tudo o mais, vocês são os guerreiros da narrativa. O vosso Dharma é fazer os outros compreender aquilo que vocês já compreenderam. O resto é o resto. E quem estiver preocupado com o resto não é guerreiro; é um peão de rimas vazias.