JOÃO CARLOS SILVA AKA JOTACE

- Sendo um homem mais ligado a música mais tradicional, apesar das pessoas apenas te ligarem à música de carnaval, o que pensas do Hip Hop Criolo?
Sendo absolutamente sincero, consumo muito pouco Hip Hop crioulo. Deveria consumir muito mais, até mesmo para poder formar uma opinião abalizada. Na verdade, grande parte daquilo que oiço é por teu intermédio. Vou vendo os teus posts no Facebook sobre o HHC e faço sempre questão de "conferir" o material. Daquilo que tenho ouvido, gosto muito. Noto uma evolução técnica muito grande, em relação ao "meu tempo", leia-se primeira metade da década de 90, em termos de produção e arranjos, mas sobretudo no que respeita à profundidade e qualidade das letras. Acho que a rapaziada amadureceu e criou uma identidade própria. O HHC hoje tem uma "cara", um estilo muito seu. Já lá vai o tempo de se imitar a vestimenta, trejeitos, maneirismos e até linguagem do Hip Hop americano. Vejo muita gente boa a aparecer.
- Consideras também "música" e achas que ocupa, nos dias de hoje, um lugar na nossa cultura musical cabo-verdiana ou ainda falta muito para ser considerado?
É música e da boa! Sendo um estilo que foge do tradicional e que é conotado sobretudo com a juventude, acaba por "não convencer" muita gente, mas creio que a autenticidade do HHC acabará por o fazer, com o tempo, conquistar o lugar que merece. À medida que o público consumidor for amadurecendo e novos amantes forem aparecendo, a popularidade do estilo crescerá também. Uma das coisas que mais me encanta no HHC é a criatividade literária e, acima de tudo, o respeito pela rima que os compositores de Hip Hop têm e que, se formos ver bem, falta na maior parte dos outros estilos. Às vezes ouvimos canções inteiras onde não há uma única rima, isso empobrece a letra. É justamente a nível de qualidade lírica que eu acho que o HHC tem uma responsabilidade cultural enorme. É um estilo virado sobretudo para a juventude e consumido predominante por jovens, isto numa altura em que há um empobrecimento geral da música nacional. Produz-se muita coisa superficial e com pouco substrato, principalmente nos estilos mais electrónicos. O Hip Hop e a suas letras bem trabalhadas é fundamental para "educar o ouvido" duma geração que se perde nos "beats", ensinando-a a valorizar a mais mensagem que a música transmite.
- Conheces algum artista de HHC que aches que neste momento tenha a visão de meter um cunho 100% nacional no RAP? Por exemplo, não sei se conheces o REVAN ALMEIDA que nos seus últimos singles tem colocado música cabo-verdiana na base dos samples. (Nota: passei os sons para o entrevistado para ele ouvir e identificar os ritmos)
O Revan é daqueles que conheci através dos teus posts. Cativou-me por cantar em crioulo de São Nicolau (terra dos meus pais). Aliás essa é uma crítica, sempre construtiva, que tenho feito a alguns compositores de Carnaval em São Nicolau, que na minha opinião pecam por não explorarem mais as especificidades do crioulo local. O Revan tem uma cadência muito agradável, fruto da métrica das rimas dele que é perfeita. Tudo casa naturalmente dentro do tempo. Se pegares numa letra dele e leres em voz alta, mesmo sem melodia, dás por ti a cantar. Isto porque a escrita dele tem um ritmo natural, decorrente da rima. Gosto da proposta musical dele e acho interessante que ele use os estilos tradicionais como "pano de fundo", mas é importante que ele, e os outros não se sintam presos ou obrigados a incorporar a música tradicional no trabalho que fazem, só para o tornar mais cabo-verdiano. O HHC tem características próprias e sendo feito por músicos nacionais, será sempre, na plenitude, música nacional, qualquer que seja a base melódica e a roupagem harmónica.
- És conhecido por um músico de parcerias. O que seria necessário para aceitares sentar-te num estúdio para gravar uma música com um MC?
Nem sabia que era conhecido como músico (eheheheheh). Desde sempre fui fascinado pela vertente da composição e em quase todos os estilos, na maior parte dos países do mundo, as parcerias são predominantes. A maior parte das músicas é normalmente de "fulano e cicrano", às vezes até tem um terceiro compositor. Tenho muita coisa feita sozinho, tanto no Carnaval, como sobretudo fora desse universo, mas confesso que prefiro compor em parceria. A partilha que envolve o processo criativo, valoriza-o e, pelo menos a mim, dá um prazer enorme. Respondendo à tua pergunta, acho que só falta um convite. Nunca me convidaram e eu também nunca convidei nenhum MC para trabalharmos juntos, mas será um prazer enorme. Temos muitos MC's talentosos e se um dia se proporcionar, não penso duas vezes.
- Não podendo negar que o HIP HOP Criolo (FALANDO APENAS DOS LANÇAMENTOS NO TERRITÓRIO NACIONAL) é neste momento o que mais lança singles/EP's/ALBUNS e vídeos nas plataformas digitais, com mais ou menos qualidade mas em quantidade superior aos outros ritmos, achas que os artistas são valorizados como merecem?
Eu tenho uma admiração enorme pela "ética de trabalho" de quem faz hip-hop. Produzem muito. Não param. Contrariamente ao que acontece na maior parte dos outros segmentos, onde tudo serve de motivo para não gravar, para não produzir. O pessoal do HHC já percebeu que a chave é gerar conteúdos, é estar presente a todo o momento junto do consumidor. Quanto à valorização dos artistas, eu acho que o pessoal do Hip Hop sofre um pouco por uma associação errada por parte do público a outros estilos. Se formos ver bem, quem não conhece, tende a colocar tudo no mesmo saco. Pega em Hip Hop, Funk, Afro beats, Kuduro, etc. e acha que é tudo a mesma coisa. É uma barreira que o Hip Hop acaba por ser obrigado a ultrapassar, para ter o respeito e a valorização que merece, enquanto estilo.
- Sentes que por ser uma arte muito ligada aos meios digitais e pouco aos instrumentos musicais, leva a que os "tradicionalistas", não só em CV mas no mundo em geral, a vejam como uma arte menor?
Eu prefiro a música acústica, ou seja tocada por instrumentos. Mesmo em termos de Hip Hop, acho que ter uma banda de suporte, mesmo com um bom DJ, é melhor. Valoriza a qualidade melódica e, quando o MC tem bons recursos vocais, sai a ganhar. Brilha mais. Olha por exemplo o Boss AC, que hoje em dia trabalha com uma banda espetacular[TT3] . O resultado está à vista. O Guru (JazzMatazz) sempre tocou com banda também. Reconheço que é complicado porque obriga a ter outros recursos técnicos e financeiros, o que talvez iniba muitos MC's de trabalhar com bandas. Por outro lado, a criatividade da rapaziada é tanta e a evolução tecnológica é tal, que as bases melódicas hoje em dia obrigam a quem ouve Hip Hop, a despir-se de preconceitos e reconhecer a qualidade do trabalho que é feito.
- A sátira e crítica social sempre estiveram ligadas à nossa música tradicional (é só prestar atenção às letras das coladeiras antigas) mas neste momento essa "missão" tem sido mais responsabilidade dos MC's. Achas que os compositores/letristas de música tradicional cabo-verdiana têm perdido esta qualidade de ver e mostrar as mazelas da nossa sociedade nas músicas? Ou isso é apenas impressão minha?
Acho que aí há uma espécie de circulo vicioso. Os compositores não "criticam" porque o público não absorve as críticas, não as valoriza e prefere outras temáticas e o público, por seu turno, abraça a superficialidade e os temas banais, porque não lhe é "oferecido" mais nada. Hoje a música popular talvez tenha menos substrato e os artistas tenham tendência a produzir aquilo que acham que vai vender, que passa necessariamente pelos temas brejeiros e virados para "festa", tcholda", "goze", etc. Faz falta fazer mais música que "faça pensar" e que não esteja voltada para "likes", "views", "hits", seguidores, etc. As métricas de avaliação estão mais centradas na popularidade do que na qualidade e há compositores que acabam reféns dessa dinâmica. Outros simplesmente "largam a caneta".
- Como artista, sentes-te preso ao politicamente correto quando escreves uma letra? Ainda mais com a rapidez com que atualmente as pessoas julgam e condenam os outros, principalmente com as redes sociais e as caixas de comentários.
Hoje em dia é mais aquilo que não se pode dizer, do que o que se pode. O Mundo está a tornar-se complicado de se estar e de viver. Dá a impressão que as pessoas estão naturalmente predispostas a discordar de tudo. Depois há imensas susceptibilidades à flor da pele, que nos arriscamos a ferir, sempre que abrimos a boca, para não falar dos oportunistas e "incendiários" de plantão, que arranjam sempre forma de fazer com que as pessoas se indisponham com o que lêem. Eu tento ser o mais autêntico possível, mas às vezes confesso, que se puder evitar "controvérsias" desnecessárias e contraproducentes, prefiro estar quieto, sem no entanto deixar de ser interventivo.
- Sendo um grupo que foi muito desconsiderado e marginalizado pelas "elites" quando foi lançado, considero o Bulimundo quase uma semente do que passa agora. Um estilo (FUNANÁ) que também teve de ganhar o respeito da nossa cultura com muito suor e luta, tendo inicialmente conquistado a população mais periférica e só mais tarde teve o respeito das nossas elites (não gosto de usar esta expressão mas é a única que exprime o que quero dizer). Com todo o respeito pela comparação com um dos GRANDES da nossa cultura, achas que posso fazer esta analogia? Fica à vontade para concordar ou discordar desta minha ideia.
Os Bulimundo provocaram uma autêntica revolução no cenário musical nacional, estilizando, urbanizando e tornando, por conseguinte, mais popular um estilo musical até então, de certa forma marginalizado e estigmatizado, como era o funaná. Terão tido uma vantagem relativamente ao HHC, ou pelo menos uma muleta adicional de suporte: A proposta criativa deles assentava em estilos de música tradicionais, de propagação massiva. Talvez não tanto o funaná, pelo menos não no início, mas o repertório deles contava também com muita morna e coladeira. Para além disso, na altura os bailes de conjunto davam uma visibilidade muito grande aos grupos. A própria conjuntura socio-política da época dava-lhes um "espaço natural". O Hip Hop em Cabo Verde vai crescer e vai ter com certeza um nível de propagação superior ao que tem hoje, mas não sei se chegará a penetrar de forma tão enraizada em todos os quadrantes da sociedade, como fez o funaná, até mesmo por lhe faltar a "raiz" cultural. O cosmopolitanismo e transversalidade do Hip Hop dificultam a sua integração plena em qualquer cultura, como algo que lhe pertença, mas por outro lado permitem que seja apreciado por mais gente em outros lugares. Quer dizer, o HHC pode nunca vir a ser visto como algo 100% representativo da cultura cabo-verdiana, mas pode perfeitamente vir a ser ouvido e apreciado por gente que se calhar nunca ouviu falar em Cabo Verde.
- Para finalizar, podes dar uma palavra aos nossos artistas e a quem faz do HIP HOP a sua arte? Fica à vontade.
Sejam fiéis à arte e sejam autênticos. O Hip Hop tem uma particularidade muito especial. Mais do que qualidade, tem de ter credibilidade e essa credibilidade só existe se houver verdade naquilo que é dito. É um estilo interventivo que obriga as pessoas a serem sinceras, para serem apreciadas. Eu posso pegar numa história tua, num episódio da tua vida e narrá-lo na primeira pessoa numa coladeira, numa morna, num samba, etc., mas o Hip Hop não permite isso. As temáticas que funcionam no Hip Hop, obrigam à verdade. Se eu for cantar a realidade da periferia, falar da violência, fome, miséria, injustiças sociais, etc., na primeira pessoa, sem ter vivido nada disso na pele, vai invariavelmente soar a falso. É claro que qualquer pessoa, de qualquer extracto socio-económico, desde que tenha talento, pode enveredar pelo Hip Hop, mas tem que cantar a verdade, a "sua" verdade. CONTINUEM FIRMES E FORTES na vossa caminhada, rapaziada. A nossa cultura precisa e AGRADECE.
- Espero que tenhas gostado da proposta do blog e se puderes deixar umas palavras de incentivo (ou sugestões/criticas), fica a vontade
Já
estava mais do que na hora de termos alguém a olhar para a cena HHC e a
partilhar aquilo que se vai passando com o público. Excelente
iniciativa. Não fiques por aqui. Vai em frente, mano.